O seminário começa às 8h30 da manhã, como previsto. Cerca de 80 profissionais de diferentes setores se acomodam numa sala de aula onde, durante a manhã e a tarde inteiras, assistirão ao filósofo e professor Mario Sergio Cortella falar sobre a natureza e a construção do poder e as competências necessárias para exercê-lo. Cortella não dispõe de nenhuma apresentação em PowerPoint ou de outro recurso audiovisual para sua aula, apenas um simples flipchart no qual rabiscará algumas poucas palavras, e sua própria voz. Durante as próximas oito horas, com breves intervalos para almoço e coffee-break, ficará evidente que é só disso que ele precisa para manter o interesse de cada um dos participantes na sala.
A cena se repete sempre que o filósofo, ex-secretário municipal de Educação de São Paulo, autor de dezenas de livros e comentarista da TV Cultura e da rádio CBN, é convidado pela Integração Escola de Negócios para dar o curso Poder e Competências, que faz parte da série de seminários Workshop de Notáveis.
Na palestra, o filósofo faz sua própria construção do poder
Cortella sabe que terá “domínio” sobre sua plateia porque detém um elemento imprescindível para tornar isso legítimo: conhecimento. Um conhecimento enciclopédico, demonstrado já nos primeiros momentos do curso. Ao pedir que cada aluno se apresente, ele interage com todos individualmente, aproveitando a resposta de cada um para citar fatos e inspirar reflexões sobre assuntos diversos. Para efeito de uma (brevíssima) amostra, entre os assuntos tratados por Cortella num dia típico do curso, estão: o nome científico do cacau, a cidade paraibana conhecida por produzir a melhor carne-de-sol do país, o significado da palavra “propina” em Portugal, o julgamento do Mensalão, os filmes De Volta para o Futuro, Náufrago e Matrix, a relação entre o filósofo grego Diógenes e o seriado mexicano Chaves, a origem dos nomes dos meses no calendário gregoriano, a influência da geografia urbana na geração de craques do futebol etc.
Pode parecer piada (e Cortella é, de fato, muito divertido), mas aos poucos vai se tornando clara a intenção do palestrante. Assim, num seminário sobre poder, a própria aula funciona como metáfora para as competências que Cortella apresenta como fundamentais para a construção do poder. Demonstrar conhecimento é uma delas. Engajar o grupo na construção de um “saber coletivo” é outra.
Ao final de um dia inteiro, a plateia sente-se indiscutivelmente mais rica, tendo tirado lições importantes sobre o que faz um líder ser, verdadeiramente, um líder. A seguir, seis lições sobre poder e competências inspiradas pela aula do professor Mario Sergio Cortella.
Estar no poder é diferente de ser poderoso
1. O exercício do poder é sempre circunstancial. Manter o poder legítimo, portanto, exige competência.
Cortella é o primeiro a admitir: sua autoridade como professor precisará ser construída durante a aula. Para isso, terá de demonstrar competências que legitimarão o respeito dos alunos por ele, como a propriedade com que se expressa e controla o ritmo e a duração do curso. “Espero exercer autoridade, ou seja, um poder legítimo, e não autoritarismo, que é um poder apenas hierárquico”, diz ele.
A reflexão crítica ajuda a desconstruir o poder
2. Se o poder é circunstancial, e não um dado “natural”, pode ser questionado. Mas pouca gente reflete sobre isso.
Cortella enumera diversos exemplos de como a “naturalização do poder” permeia quase todos os aspectos da vida. Dessa forma, demonstra como refletir, mesmo sobre as coisas mais óbvias, ajuda a desconstruir o poder que não é legítimo. “Tudo carrega poder: o nosso idioma (em que o gênero dominante é o masculino), a arquitetura, a própria geografia”, diz. Ele lembra ainda que o mapa múndi moderno foi elaborado numa época em que a Europa era o “centro de poder” do mundo. “De acordo com o mapa, Estados Unidos e Rússia estão em extremos opostos, e no entanto, a distância entre o Alaska e a Sibéria é quase a mesma que entre São Paulo e Jundiaí.”
Para que haja a construção do poder é preciso haver conflito
3. Nem todo líder se sente à vontade para estimular a reflexão crítica entre seus liderados. Mas a inovação não acontece de outra forma.
“Em última instância, o poder é um concerto entre liberdades conflitantes”, diz Cortella. Segundo o professor, quem está no poder tem a prerrogativa de influenciar um grupo de pessoas que têm ideias, interesses e vontades diferentes. O poder legítimo não sufoca esses conflitos, e sim os administra para conduzir a um objetivo em comum. A meta do bom gestor, portanto, seria ter uma equipe com diversidade na reflexão, mas unidade na ação. Por outro lado, o mau gestor, preferiria não ter seu poder questionado, sufocando os conflitos para criar uma equipe em que “todo mundo pensa igual”. “Esses conflitos precisam existir para que o grupo abandone a visão quadrada, estática, do que pode ou não pode ser feito”, diz ele. “O conflito é criador, inovador, porém não se pode confundir com confronto, que só enfraquece o grupo.”
O jeito mais rápido de se tornar vulnerável é se sentir invulnerável
4. Assim como o poder legítimo avança com os conflitos dentro do grupo, ele também se beneficia de um adversário à altura.
Não são apenas os liderados que precisam refletir criticamente sobre os limites do poder. O próprio líder precisa fazê-lo constantemente e, para isso, ajuda bastante ter concorrentes capazes. “Um concorrente burro te emburrece porque faz você se sentir invulnerável”. De acordo com Cortella, menosprezar a concorrência seria um erro crasso – expressão que, não por acaso, tem origem na experiência do general grego Marco Licínio Crasso, que no ano de 59 a.C. sofreu uma trágica derrota militar por confiar única e cegamente na superioridade numérica de seu exército contra um povo inimigo.
A tarefa do poder é servir ao grupo. O poder que apenas se serve, não serve
5. O poder só é vigoroso quando dá margem a ações grupais. Para isso, o respeito é palavra-chave. Tanto respeito pela equipe quanto pelo próprio cargo.
Se há um elemento essencial para o exercício e a construção do poder é o respeito pelo grupo. Esse respeito se manifesta na liberdade que se dá aos conflitos e às diferenças de opinião, mas também de outras formas que costumam ser esquecidas. “Sabe aquele chefe que costuma reclamar das responsabilidades da liderança? Que diz (quase sempre da boca para fora) que preferia ser ‘um peão’?”, pergunta Cortella. Essa postura, segundo ele, desrespeita o seu cargo – e portanto o grupo inteiro. O líder tem que assumir o poder como um patrimônio da equipe.
Quem não sabe, procura saber. Quem sabe, reparte
6. Se a finalidade do poder é elevar o grupo, a principal responsabilidade do poder é elevar a competência coletiva. E não há maior competência do que o conhecimento.
“O maior patrimônio de uma empresa é o seu estoque de conhecimento”, afirma Cortella. “E conhecimento precisa ser gerido, não é commodity”. Para o professor, o líder precisa promover um clima de permeabilidade intereducativa na equipe, que pode ser resumido da seguinte forma: “Quem não sabe procura saber, quem sabe reparte”. Na prática, diz Cortella, o liderado precisa ter liberdade para perguntar, questionar. Já o líder precisa se comunicar com o grupo de forma que todos tenham clareza sobre seus objetivos – sem medo, inclusive, de “falar difícil”. “Uma das tarefas do poder é desvendar, explicar. Se eu elevo o repertório do outro, amplio o meu próprio saber porque ambos partilhamos do mesmo saber coletivo.”